domingo, 22 de abril de 2007

Descobrimento do Brasil - um relato português

Guerreiro. Nobre, porém filho segundo. Honrarias? Só as alcançadas por valor e esforço próprios, que não por nascimento. D. João II já lhe dera tença por bons serviços militares prestados à Coroa. Agora D. Manuel I confia-lhe o comando da segunda expedição à Índia, 13 naves, 1500 homens. Terá que submeter o Samorim de Calecute, o qual tanto afrontara Vasco da Gama. Terá que lançar a primeira pedra do império lusitano do Oriente.

Honras e pompas em Sta. Maria de Belém e a 9 de Março de 1500 fazem-se ao largo. Antes, El-rei D. Manuel falara-lhe de terra que, frente à África, existirá a ocidente do Mar Oceano. Que a descobrisse, se pudesse. Talvez por ela D. João II tenha insistido em transferir o meridiano divisor do Tratado de Tordesilhas de 100 para 370 léguas a oeste de Cabo Verde.

Na armada, entre outros seguem Pero Vaz de Caminha, cronista d'El-rei. E ainda Bartolomeu Dias, o primeiro a dobrar o Cabo da Boa Esperança. Também o seu irmão Diogo Dias e Nicolau Coelho, que foi um dos comandantes da expedição de Vasco da Gama.

Primeira maldição: nas águas de Cabo Verde desaparece uma das naus. Ninguém saberá dela, nunca mais. Das 13 ficam 12.

Frente à Guiné tomam barlavento. Américo Vespúcio não entende a manobra, resmunga que os portugueses nada sabem de navegação... Deixá-lo resmungar, o italiano é bom marinheiro, tem direito a um resmungo... Tocadas por sueste, as naus são empurradas para ocidente. Girará depois o vento para sudoeste e tornará a armada à costa d'África, porém em latitudes bem mais ao sul. Abaixo do Equador descreverá assim um amplo arco de círculo no Mar Oceano.
Imagem - Instruções de Vasco da Gama para Cabral
21 de Abril, 3ª feira. A Páscoa foi no domingo passado. Nas ondas surgem ervas compridas. Próxima já ficará a terra aventada por El-rei.
22 de Abril. De manhã surgem bandos de pássaros a voar para ocidente. Vasco da Gama também dera conta deles. A meio da tarde, muito ao longe, avistam terra: um monte redondo e alto, muito arvoredo na terra chã. Ao monte, o Capitão-mor chama Pascoal e à terra dá o nome de Vera Cruz. Anoitece e resolve ancorar a seis léguas da costa.
23 de Abril. Avançam até meia légua da terra, direitos à boca de um rio. Sete ou oito homens pela praia. Cabral manda Nicolau Coelho a terra. Quando vara o seu batel, já correm para ele cerca de vinte homens pardos. Todos nus, sem nada que cubra as suas vergonhas. Setas armadas, cordas tensas, chegam dispostos ao combate. Mas Nicolau Coelho, por gestos, faz sinal que pousem os arcos em terra e eles os pousam.
E o Capitão-mor pergunta-se: que gente é esta que, até por gestos, aceita a mansidão? Ingenuidade ou malícia? Ingenuidade será excessiva. Será malícia, certamente. É preciso ficar em guarda.

O quebra-mar é forte. Mal se podem entender marinheiros e nativos. Mas Nicolau dá-lhes ainda um barrete vermelho e um sombreiro preto e, por troca, recebe um colar de conchinhas e um sombreiro de penas de ave, com plumas vermelhas, talvez de papagaio. E com isto se torna à nau, porque é tarde e a maré está a puxar muito.

Ao anoitecer começa a ventar de sueste com muitos chuviscos e Cabral resolve mandar levantar ferro e rumar para norte, em busca de enseada onde se possam abrigar e então repara que na praia já correm e gesticulam cerca de sessenta a setenta homens. O que estarão eles a conspirar?
24 de Abril. Acham uma angra e antes do sol-posto lançam ferro e àquele lugar o Capitão-mor dá o nome de Porto Seguro. Depois faz muitas recomendações a Afonso Lopes, que nunca baixe a guarda, que não se deixe apanhar desprevenido e manda-o a terra num esquife. E o piloto, que é homem destro, com muita amizade e gentileza consegue recolher dois daqueles mancebos que em terra corriam e, com muito prazer e festa, a bordo são recolhidos.

Espantado continua o Capitão-mor. O mundo é guerra e perfídia. Como podem ser tão confiantes aqueles nativos? Alguma traição andam eles a tramar, a astúcia como escudo, a crueza como lança...
A feição deles é serem pardos, à maneira de avermelhados, de bons rostos e narizes bem feitos. Andam nus sem nenhuma cobertura e estão acerca disso em tanta inocência como estão em mostrar o rosto. Trazem ambos os beiços furados e metidos por eles uns ossos brancos da grossura de um fuso de algodão. Os cabelos são corredios e andam tosquiados de tosquia alta. E um traz, de fonte a fonte, por detrás, uma cabeleira de penas de aves, que lhe cobre o toutiço e as orelhas. Sobem à nau e não fazem menção de cortesia nem sequer ao Capitão-mor. Mas um deles põe olho no colar de ouro que do pescoço traz pendurado ao peito e começa a acenar com a mão para terra e depois para o colar, como que a dizer que há ouro naquela terra. Mas isso o tomam os portugueses por assim o desejarem, mas se o nativo quer dizer que deseja levar o colar para terra, isso não o querem eles entender... Cabral mostra um papagaio que trouxe de África. Os nativos logo o tomam e apontam para a costa, como que a dizer que aquela será terra de papagaios. Os navegantes mostram depois um carneiro. Os nativos não fazem dele menção. Mostram-lhes uma galinha, ficam receosos e temem meter-lhe mão. A seguir, dão-lhes de comer pão, peixe cozido, mel, figos passados e vinho por uma taça. Não querem comer ou beber daquilo quase nada e alguma coisa, se a provam, logo a lançam fora.

Dão-lhes água por uma botelha. Tomam dela o seu bocado, mas somente lavam as bocas e logo lançam fora. No convés, estiram-se então de costas, sem terem nenhuma maneira de cobrir suas vergonhas, as quais não são fanadas. O Capitão-mor manda deitar-lhes um manto por cima e eles consentem e descansam e adormecem.

Será possível que possa haver mundo diverso daquele que o Capitão-mor viveu e sabe? Sem guerras, nem perfídia, nem traições? Será possível a fraternidade entre os homens e a comunhão dos seus interesses? Existe ainda na Terra o Paraíso que Adão e Eva perderam por malícia da Serpente?

Ao sábado pela manhã o Capitão-mor manda Nicolau Coelho, Pero Vaz de Caminha e Bartolomeu Dias levar a terra os dois mancebos. E muitos homens os cercam e falam e gritam mas tudo sempre em jeito de amizade. Também algumas moças muito moças e gentis, com cabelos muito pretos e compridos a tombar pelas espáduas e suas vergonhas tão altas e cerradinhas que delas vergonha não pode haver.
No domingo de Pascoela determina o Capitão-mor que Frei Henrique cante missa num ilhéu que há na entrada daquele porto, a qual é ouvida com devoção, Cabral empunhando a bandeira de Cristo que trouxera de Belém. E durante a missa muitos nativos se aproximam em suas canoas feitas de troncos escavados. Alguns juntam-se aos navegantes tocando trombetas e buzinas. Os restantes saltam e dançam o seu bocado.Não há vestígio nem de guerra, nem de traição, nem de perfídia, nem sequer de receio. Já vacila o Capitão-mor na sua desconfiança.

Na 6ª. feira opina irem à cruz que chantaram encostada a uma árvore junto ao rio. Manda que todos se ajoelhem e beijem a cruz. Assim o fazem e, para uns doze nativos que mirando estão, acenam que assim façam. Eles ajoelham-se e assim o fazem.
Ao Capitão-mor já lhe parece aquela gente de tal inocência que, se fosse possível entendê-los e fazer-se entender, logo seriam cristãos. Não têm crença alguma, ao que parece. Os degredados que hão-de ali ficar, hão-de aprender a sua fala e não duvida o Capitão-mor que bem conversados logo sejam cristãos, porque esta gente é boa e muito simples. E Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, ao trazer cristãos àquela terra, Cabral crê que não foi sem causa.
Ainda nesta mesma 6ª. feira, dia primeiro de Maio, indo os navegantes pelo rio abaixo, os sacerdotes à frente, cantando em jeito de procissão, setenta ou oitenta daqueles nativos metem-se a ajudá-los a transportar e a chantar a cruz junto à embocadura. E quando, já na praia, Frei Henrique canta a missa, todos eles se ajoelham como os portugueses. E quando vem a pregação do Evangelho, levantam-se os portugueses e com eles levantam- se os nativos. E os cristãos erguem as mãos e os nativos erguem as suas. E quando Frei Henrique levanta a Deus, outra vez se ajoelham os navegantes e com eles os nativos. Já acha o Capitão-mor que a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior.

Esta terra será imensa, dela não se vê o fim. De ponta a ponta é toda praia chã, muito formosa. E os arvoredos, com muitas aves coloridas, correm para dentro a perder de vista. Alguns dos paus são de madeira avermelhada, cor de brasa.(4) Os ares são muito bons e temperados. As fontes são infindas. Querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Mas o melhor fruto, a principal semente, pensa Cabral, será a de salvar o seu povo que tão gentilmente ali vive em estado natural.
Manda Pero Vaz de Caminha escrever novas do achamento. Depois manda Gaspar de Lemos levar a carta a El-rei e ele parte, com a sua nau, rumo a Lisboa. Das 13 agora restam 11. Abalam de Vera Cruz a 2 de Maio. Em terra ficam dois degredados para aprender a fala do povo. Mais dois grumetes que, por vontade própria, faltaram ao embarque. Os rapazes são cativos das nativas, seus cabelos muito pretos e compridos a tombar pelas espáduas, suas vergonhas tão altas e cerradinhas que delas vergonha não pode haver...

Abalando do Paraíso, corroído de inocência, lá vai o Capitão-mor. Será maleita perigosa a diluir-lhe o ímpeto guerreiro, pois tem agora que enfrentar as guerras e perfídias do Inferno.
Texto de Fernando Correia da Silva



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